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LESÃO DESPORTIVA: MITOS E FACTOS

Atualizado: 14 de mai. de 2022

O risco de lesão no exercício físico: poderá um fenómeno complexo beneficiar de abordagens simples? ...


Ponto de partida


Respondendo de forma direta e contundente ao repto lançado no título, poderemos avançar com um claro e rotundo... “talvez”! Isto, é depende. Bom, mas “talvez” porquê? E “depende” de quê? O processo de lesão raramente é simples. Por norma, envolve um vasto conjunto de fatores (logo, é multifatorial) que, ainda por cima, teimam em interagir de formas complexas e não-lineares. Portanto, esperar reduzir o risco de lesão através de processos simples poderá parecer – conforme o ponto de vista – arrogante ou ingénuo. Todavia, porém, não obstante: talvez as abordagens simples constituam um excelente ponto de partida, possibilitando um conjunto de intervenções práticas, baratas e massificáveis que auxiliem uma considerável percentagem da população que pratica desporto. Talvez – e é um talvez bastante hesitante – adotar programas de “prevenção de lesões” complexos, morosos e, por vezes, caros, não faça sentido na maioria das situações. Mais sobre este tema no decorrer do presente ensaio. Detenhamo-nos, porém, na bicuda expressão “prevenção de lesões”. Sejamos humildes: nós não prevenimos lesões. A prova cabal é que elas ocorrem e são, até, frequentes, mesmo em contextos nos quais são implementados sofisticados programas de “prevenção de lesões”. Eventualmente, com uma mistura de ciência, arte e sorte, talvez consigamos reduzir o risco de exposição a certo tipo de lesões (mas não de todas) (Cook, 2016).


Dado o mote para o apaixonante e convoluto tema do risco de lesões (no, ou, associadas ao exercício físico), importa sublinhar que este ensaio constitui apenas um “aperitivo” para um tema por demais vasto e cujo aprofundamento dos seus múltiplos fatores não caberia nesta sede. Discussões mais profundas terão o seu palco em sede própria. De igual forma, arte e ciência avançam, modificam-se, transformam-se, pelo que toda e qualquer afirmação que encontrem neste texto – por mais acutilante e confiante de si própria que possa parecer – está condenada a uma desatualização e crítica. Não constitui este ensaio, portanto, verdade absoluta ou palavra da salvação, mas somente uma pequena semente que visa incentivar à curiosidade. A partir daí, o pensamento crítico, o estudo e a experimentação competirão a cada um. Nenhuma pessoa pode escusar-se à sua quota parte de responsabilidade pelo conhecimento e suas aplicações. Mergulhemos, pois, nas águas mais superficiais que a este tema dizem respeito.

A caminho


Existem vários programas autointitulados de “prevenção de lesões”, um dos mais populares dos quais, atualmente, é talvez o FIFA 11+ (FIFA, 2007). Este, direcionado para o futebol, constitui um perfeito exemplo dum programa de exercício profundamente simples de entender, ensinar e aplicar (exercícios relativamente simples, tanto em termos biomecânicos, quanto na sua logística operacional), temporalmente pouco custoso (2x/semana, 20 minutos por sessão) e financeiramente gratuito (à exceção de alguns sinalizadores/cones). Como tal, facilmente poderá ser massificado e operacionalizado, com taxas de adesão potencialmente muito elevadas. Ainda por cima, alguns exercícios já contemplam pequenas progressões. E a investigação tem sugerido que este protocolo apresenta benefícios que se traduzem na redução do risco de lesões (Neto et al., 2017; Sadigursky et al., 2017) e dos custos associados a essas mesmas lesões (Nouni-Garcia et al., 2019). Há problemas associados a estas interpretações simplistas, que iremos explorar num futuro curso sobre o tema, e que se relacionam com os desenhos dos estudos, riscos de viés de diferentes tipos, interpretação e confiabilidade dos testes aplicados, testagem não cega, valores de corte não replicados, entre outras complexidades (Cook, 2016). Não obstante, os dados sugerem, com maior ou menor grau de confiança, que intervenções simples podem, com bastante eficácia, reduzir o risco de certo tipo de lesões (embora não eliminem esse risco).


De realçar, todavia, que estamos a falar de intervenções com uma duração no tempo, e não de testes isolados e interpretados de forma descontextualizada. No futuro curso, a bateria de testes FMS e outros testes populares (p.e., sit-and-reach) serão dissecados em profundidade, em jeito de alerta para as conclusões que pretendemos deles retirar, sobretudo quando os pretendemos utilizar como “preditores” de risco de lesão. Por exemplo, os rácios obtidos em testes isocinéticos do joelho (tanto flexão : extensão, quanto direita : esquerda) não constituem bons preditores de risco de lesão (van Dyk et al., 2016; Zvijac, Toriscelli, Merrick, & Kiebzak, 2013), pelo que os seus valores serão potencialmente mais úteis na ótica de uma comparação intraindividual no tempo do que na lógica da comparação interindividual. A propósito: os testes isocinéticos envolvendo flexão e extensão de joelho aportam rácios sobre flexores e extensores de joelho e não rácios entre quadricípites e isquiotibiais! Infelizmente, esta incorreção anatómica até em alguns artigos científicos tem surgido. Na realidade, embora a extensão do joelho fique largamente a cargo dos quadricípites, a situação é mais complexa do que se possa pensar (consultar, p.e., Neumann (2010) e Tubbs, Shoja, and Loukas (2016)). Onde a situação é clara, porém, é relativamente aos flexores de joelho: os isquiotibiais não são os únicos músculos envolvidos nesta ação. À parte músculos menores como o poplíteo e o plantar delgado, não é possível ignorar as ações de grácil, gastrocnemius (medial e lateral) e sartório (Neumann, 2010).


Testes múltiplos e repetidos no tempo, aliados a uma observação e monitorização diária dos praticantes poderão constituir a melhor forma de garantir informação atualizada e contextualizada. Por sua vez, a aplicação consistente de programas simples como o FIFA 11+ ou exercícios populares como o famoso “Nordic hamstring” podem ajudar a reduzir o risco de de lesão (Al Attar, Soomro, Sinclair, Pappas, & Sanders, 2017; van Dyk, Behan, & Whiteley, 2019), apesar das suas limitações – que teremos oportunidade de discutir de forma aprofundada em futuras oportunidades. De igual modo, num futuro curso sobre lesões, serão exploradas as relações do risco de lesão com diferentes protocolos de aquecimento, potenciação pós-ativação e potenciação da performance pós-ativação, bem como com os efeitos do treino de força, flexibilidade, agilidade, velocidade, resistência, resistência de velocidade, resistência de força e, ainda, equilíbrio sobre esse mesmo risco. Aspetos relacionados com a gestão da carga de treino e a componente emocional também serão abordados.


Gostaríamos, no entanto, de elencar nesta oportunidade fatores que poderão reduzir ou elevar o risco de lesão, conforme sejam aplicados. Os aspetos biomecânicos qualitativos inerentes à realização dos exercícios físicos – dimensão que é profundamente cuidada e enfatizada pelo João Moscão nos seus cursos – poderão ser profundamente relevantes para a exposição ao risco de lesão. Evidentemente, erros de execução grosseiros poderão – nalguns exercícios mais do que noutros – expor os praticantes a lesões traumáticas. No entanto, existem evidências que relacionam a técnica de execução dos exercícios com o risco de exposição a lesão não traumática (Dupré & Potthast, 2020; Vannatta, Heinert, & Kernozek, 2020; Zahradnik et al., 2018). Neste sentido, a aplicação de qualquer programa de exercício físico deverá ser cuidar da boa execução técnica, partindo de normas populacionais e, tão rapidamente quanto possível, evoluir para a norma individual, i.e., garantir que o exercício está ajustado ao praticante e não constitui um modelo idealizado, teórico, forçado a alguém cujas características não permitem essa realização idealizada.

Cortando a meta


Afinal, o panorama é mais esperançoso do que prometia. Sim, parece ser possível reduzir o risco de incidência de certo tipo de lesões, embora esse risco nunca possa ser absolutamente eliminado (e, como tal, não existe prevenção de lesões em sentido restrito). E as boas notícias continuam: apesar da complexidade dos fenómenos lesionais, parece que medidas simples apresentam um elevado potencial, pelo menos como ponto de partida. Aliás, o facto de respostas simples poderem melhorar drasticamente fenómenos complexos não deveria surpreender-nos: veja-se, afinal, como o simples hábito de lavar as mãos com sabão pode reduzir o risco de diarreia em cerca 20 a 40% (Freeman et al., 2014). Obviamente, as medidas simples não irão solucionar todos os problemas e certamente não serão suficientes, mas constituirão a base a partir da qual construir soluções mais complexas. Aliás, as soluções complexas poderão não funcionar se as simples não estiverem a ser devidamente implementadas, ou seja, se a base não for sólida. A título de exemplo: nenhum programa de preparação física, nenhum treino técnico e nenhuma gestão de carga terão efeitos significativos se o praticante dormir regularmente 4 horas por noite (mais tarde ou mais cedo, a fatura será paga...). Aliás, dormir menos de 8 horas por noite pode ser o suficiente para elevar substancialmente o risco de lesão associada com exercício físico (Milewski et al., 2014). Sim, existem exceções na população, sendo a palavra-chave “exceções” – embora todos se julguem exceções no que lhes é conveniente...


Portanto, no que à redução do risco de lesões diz respeito, sugerimos uma abordagem hierarquizada, começando sempre por garantir que o básico está a ser cumprido, para somente depois adotar meios mais complexos:


1. Começar por abordagens simples e massificáveis.

Garantia de que podem chegar a uma fatia significativa da população, pois tendem a ser fáceis de aprender e de aplicar, além de exigirem pouco tempo e, não menos importante, serem baratas. Princípios simples, como dormir 8 horas por noite, gerir adequadamente a carga de treino (não tem de ser sempre “porrada”...) e buscar cuidado técnico na execução, poderão levar-nos muito longe. E, como a adesão ao processo é decisiva para se obterem os efeitos pretendidos, abordagens simples e pouco morosas tendem a facilitar essa adesão e, portanto, a garantirem mais facilmente o seu cumprimento. Contudo: se o praticante já cumpre estes pressupostos e requer algo mais e/ou está num contexto de rendimento superior e/ou tem alguma condição que merece uma atenção mais cuidada, então poderá estar na altura de evoluir para...


2. ...abordagens mais complexas.

Através dum refinamento da manipulação das diferentes variáveis que interferem com a carga de treino (e.g., volume, intensidade, densidade, frequência, direção, monotonia, etc.) e dum cuidado acrescido com os exercícios selecionados (detalhes biomecânicos da execução e adequação ao características específicas do praticante, afastando-se de modelos genéricos), aliados a aplicações que não podem ser massificadas pelo seu custo temporal ou financeiro (p.e., avaliações isocinéticas, aparatos isoinerciais), juntamente com uma melhor regulação de outros aspetos da vida em potencial articulação com outros profissionais (p.e., fisioterapeuta, médico, nutricionista, psicológico, entre outros). No entanto, é minha convicção de que estes meios não deveriam ser aplicados por modismos ou por uma ânsia de exibir sofisticação, sobretudo se os meios mais básicos, genéricos e simples não estiverem a ser implementados devidamente.


3. Dentro das abordagens, garantir diversidade.

Diversidade não é sinónimo de “inventar”, “criar por criar” ou “tudo é relativo, tudo vale”. A diversidade deverá servir o propósito de garantir que as estratégias não se tornam tão monótonas que o praticante deixe de a elas aderir (por enfado), ou induzam sobretreino, ou simplesmente coloquem a pessoa numa situação de ausência de novos estímulos e, como tal, de estagnação. Portanto, estou a falar duma diversidade direcionada e intencional. Se tivermos de dar “arroz” ao praticante, é possível que hoje seja carolino e amanhã basmati. Mas certamente “arroz” ainda não significa “donuts”. O que não significa que o ocasional “donut” não sirva o seu propósito – mas que não se torne uma desculpa para evitar o básico e necessário.


Em suma, os praticantes são seres complexos e dinâmicos, que devem ser monitorizados regularmente e de forma contextualizada, avaliando os fatores de risco numa perspetiva interacionista (Cook, 2016). No entanto, tal não deverá constituir desculpa para cruzarmos os braços e deixarmos de fazer – no mínimo – o simples e básico que, como vimos, produz resultados profundamente interessantes.


© José Afonso, 2020

Direitos de autor protegidos.

Referências

  • Al Attar, W. S. A., Soomro, N., Sinclair, P. J., Pappas, E., & Sanders, R. H. (2017). Effect of Injury Prevention Programs that Include the Nordic Hamstring Exercise on Hamstring Injury Rates in Soccer Players: A Systematic Review and Meta-Analysis. Sports Med, 47(5), 907-916. doi:10.1007/s40279-016-0638-2

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  • Dupré, T., & Potthast, W. (2020). Groin injury risk of pubertal soccer players increases during peak height velocity due to changes in movement techniques. J Sports Sci, 1-9. doi:10.1080/02640414.2020.1794769

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  • Neumann, D. A. (2010). Kinesiology of the Musculoskeletal System. Foundations for Rehabilitation (2nd Ed.). USA: Mosby Elsevier.

  • Nouni-Garcia, R., Asensio-Garcia, M. R., Orozco-Beltran, D., Lopez-Pineda, A., Gil-Guillen, V. F., Quesada, J. A., . . . Carratala-Munuera, C. (2019). The FIFA 11 programme reduces the costs associated with ankle and hamstring injuries in amateur Spanish football players: A retrospective cohort study. Eur J Sport Sci, 19(8), 1150-1156. doi:10.1080/17461391.2019.1577495

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  • Zahradnik, D., Jandacka, D., Holcapek, M., Farana, R., Uchytil, J., & Hamill, J. (2018). Blocking landing techniques in volleyball and the possible association with anterior cruciate ligament injury. J Sports Sci, 36(8), 955-961. doi:10.1080/02640414.2017.1346817

  • Zvijac, J. E., Toriscelli, T. A., Merrick, S., & Kiebzak, G. M. (2013). Isokinetic concentric quadriceps and hamstring strength variables from the NFL Scouting Combine are not predictive of hamstring injury in first-year professional football players. Am J Sports Med, 41(7), 1511-1518. doi:10.1177/0363546513487983

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