Tudo o que ler abaixo constitui a minha opinião neste momento e não tem pretensões a ser mais do que isso. As críticas construtivas serão bem-vindas.
1. Força como capacidade motora raíz (sim, mesmo na música)
A força parece ser a capacidade ou qualidade motora básica, pois é através da sua produção que o movimento ocorre (a isometria é somente um caso de micromovimento). A sincronização intra e intermuscular, isto é, a coordenação específica de ativação confere a adequabilidade do movimento face às intenções e aos constrangimentos envolvidos. Por exemplo, o músico, ao interpretar uma partitura, não precisa somente de acertar as notas, mas gerir acelerações e desacelerações que conferirão a cor à música. Força é, simultaneamente, uma capacidade condicional e coordenativa ou, melhor dizendo, uma qualidade que depende de fatores condicionais (p.e., quantidade de massa muscular) e coordenativos (p.e., ajustamento sinérgico para produzir movimento ajustado). Se desejarmos ser puristas, a velocidade está sempre presente (pode é ser infinitesimalmente pequena) e constitui, na realidade, uma relação da quantidade de força por unidade de tempo. Ou seja, a velocidade emerge como uma qualidade motora derivada da força. De igual modo sucede com a resistência, que consiste na duração da aplicação da força. E, progressivamente, torna-se mais consensual a compreensão de que a própria amplitude de movimento depende, acima de tudo, da força muscular e de processos de co-contração.
Nesta linha de raciocínio, “treino de força” parece ser uma expressão que tudo e nada diz simultaneamente, pois todo e qualquer exercício irá, inevitavelmente, apelar à produção de força. Surge, em inúmera literatura da especialidade, o termo “treino com resistências”. Porém, todo o treino implica resistência, mesmo que seja somente a do próprio corpo e, à superfície do planeta, a gravidade (para não falar de resistências inerciais lineares e rotacionais). No entanto, o termo “treino com resistências” acarreta, implicitamente, a noção de que serão resistências externas em adição ao próprio corpo e à gravidade. Portanto, e para evitarmos uma cadeia infindável de contradições, aceitemos “treino com resistências” como a forma preferencial de desenvolver a qualidade motora matriz que é a força.
2. Treino com resistências – aspetos básicos
O treino tradicional com resistências possui um leque muito alargado de interessantes ferramentas: frequência semanal das sessões, número de exercícios por sessão, sequência/ordem dos exercícios numa mesma sessão e na semana, tipologia de cargas (p.e., repetições maximais vs. não-maximais), grau de proximidade à exaustão, número de séries, número de repetições, descanso entre séries e entre exercícios, tipo de pausas (p.e., ativas vs. passivas), velocidade de execução, planos e amplitudes de execução, rácios de duração das fases (concêntrica, isométrica pós-concêntrica, excêntrica, isométrica pós-excêntrica), velocidade das transições de fase, materiais utilizados (p.e., barra vs. halteres), grau de estabilidade da superfície de treino, entre muitas outras variáveis de imenso valor potencial. Sem negar a importância de manipular cada uma destas variáveis, para não falar das múltiplas conjugações possíveis, acreditamos que, ainda assim, o treino com resistências não tem explorado todo o seu potencial, nomeadamente o seu potencial coordenativo.
Nas linhas que se seguem, iremos explorar algumas propostas complementares a utilizar oportunamente no treino com resistências. Em particular, iremos explorar o que poderemos aprender com o treino dos músicos, concretamente os instrumentistas. De facto, treino é treino – e, concomitantemente, não há motivos para pensar que a Metodologia do Treino ou a Aprendizagem Motora sejam substancialmente distintas consoante o campo de aplicação. As bases são as mesmas (incluindo as fundações anatómicas e fisiológicas), com ajustes específicos para cada área. Aliás, esses ajustes são necessários até mesmo dentro duma mesma área, pois tocar violino terá especificidades distintas de tocar piano, tal como praticar futebol é distinto de praticar natação. Não obstante, certos princípios gerais poderão ser aplicados ao treino com resistências. Aqueles que iremos propor enfatizam substancialmente os aspetos coordenativos, em especial a independência do trabalho das duas mãos, bem como a independência do trabalho de mãos e pés.
Para lá deste valor intrínseco, as propostas visam, igualmente, aumentar o leque de ferramentas do Personal Trainer (PT), contribuindo para uma maior (potencial) capacidade de ajustar o trabalho às características do cliente e, também, diversificar mais o treino, evitando a monotonia e motivando novas adaptações. Evidentemente, a diversidade não deve ser implementada a expensas da consistência, o que significa que tais decisões apelam a um processo de responsabilização elevado por parte do PT. Antes de prosseguirmos, importa sublinhar novamente que as propostas aqui apresentadas não pretendem substituir o que já é feito ao nível do treino com resistências, mas tão somente complementar essas mesmas propostas. Igualmente, o grau de adequabilidade destas propostas dependerá dos objetivos e características específicas de cada cliente. Finalmente, adequabilidade pode não equivaler a pertinência. Em suma, compete ao PT decidir como, quando e porquê utilizar as propostas que se seguirão. Perdoem-me a repetição, mas afigura-se necessária para evitar a descontextualização do que se segue.
3. Propostas complementares para o treino com resistências
3.1. Assimetrias propositadas e acentuadas
No treino com resistências, é comum os movimentos serem realizados com relativa simetria ou intenção de simetria. Mesmo no caso da utilização de halteres, os movimentos realizados com o MS direito tendem a ser repetidos pelo MS esquerdo, umas vezes em sincronia, outras alternadamente. É possível, todavia, expandir as abordagens para incluir movimentos intencionalmente assimétricos. Tomemos o treino do piano como exemplo: (i) enquanto a mão direita toca certo conjunto de notas, é usual a mão esquerda tocar um conjunto distinto de notas; (ii) por vezes, enquanto uma mão toca de forma suave, a outra fá-lo de modo forte; (iii) os ritmos e número de notas por compasso são, frequentemente, distintos entre mão direita e esquerda; (iv) o tipo de toque na tecla também pode variar – uma mão em legato e outra em staccato. E pode haver conjugações diversificadas dos aspetos mencionados. Por que não adotar, ocasional e oportunamente, este tipo de lógica no treino com resistências? Seguindo a sequência de ideias acima: (i) MS direito realiza um exercício distinto do MS esquerdo, p.e., um realiza supino com haltere enquanto o outro realiza abertura com haltere; (ii) os dois MS realizam o mesmo exercício, mas com distintas cargas externas em cada mão; (iii) os dois MS realizam o mesmo exercício, mas com velocidades distintas, produzindo assimetria acentuada e propositada entre os dois lados; (iv) os dois MS realizam o “mesmo” exercício, mas com diferentes pegas. É possível, ainda, variar os planos e amplitudes de realização, tornando-os substancialmente distintos entre MS direito e esquerdo. Evidentemente, estes princípios podem ser aplicados aos MI.
3.2. Interferência contextual
A música explora, no seu treino, muitos ensinamentos trazidos à luz pela Aprendizagem Motora. De novo, poderemos transpor esses elementos para o treino com resistências. Um dos principais seria uma regulação da adequada interferência contextual, cujo contínuo pode ir desde exercícios altamente controlados e em ambientes estáveis, até exercícios com perturbações propositadas (p.e., provocar um erro e perceber de que forma o músico responde a esse erro). Este contínuo permite ajustar a realização do exercício a diferentes fases de aprendizagem. A título ilustrativo: em fases iniciais de aprendizagem dum agachamento, será interessante reduzir o grau de interferência contextual – superfície estável, movimento lento e controlado, carga externa baixa, feedback focado na ação, pouco ou nenhum ruído envolvente, ambiente tranquilo e, se possível, sem distratores visuais. Porém, quando o cliente já domina o movimento, a progressão não precisa de ser, obrigatoriamente, obtida via maior carga externa, mais séries, mais repetições, maior frequência semanal. Existem vias alternativas de progressão, vias que possibilitam testar a qualidade do movimento sob pressão, i.e., sob forte interferência contextual externa. Esse “ruído” pode passar por música com volume elevado, estímulos visuais distratores, treinador a emitir feedbacks verbais ou táteis propositadamente distratores, introdução de tarefa dupla, superfícies instáveis (não sou adepto desta situação, mas não nego o seu interesse pontual e controlado), entre outras possibilidades. Voltando à música, uma situação interessante é a demanda de exercícios que exijam ação assíncrona de MS e MI, com MS a tentarem realizar uma tarefa enquanto os MI realizam outra. Pensemos no pianista que, enquanto toca com as mãos, produz modulações com os pedais.
3.3. Criatividade e improviso
Um processo muito utilizado na música – e que também poderia ser mais explorado no treino com resistências – é o improviso. Calma! Sublinhemos que nenhum improviso deverá surgir do nada. Após a construção duma estrutura sólida, poderá ser interessante incorporar algum grau de improviso no treino. Esse improviso pode passar por estratégias pouco habituais no ginásio. Um exemplo consistiria em o PT explicar o objetivo do exercício seguinte ao cliente, mas ter de ser o cliente a construir o próprio exercício. Outro exemplo seria o PT tentar criar desequilíbrios propositados e aleatórios no movimento que o cliente está a tentar executar, tendo o cliente de manter o foco e recuperar a qualidade do movimento mesmo após erro provocado pelo PT. Uma terceira opção consistiria em criar um desafio ao cliente (p.e., um circuito novo e “estranho”), mas deixar a seu cargo a forma específica de resolução do problema que foi colocado. O PT poderia, ainda, inibir um dos sentidos do cliente, obrigando à resolução do problema sem o auxílio desse sentido (p.e., vendar os olhos para retirar a possibilidade de controlar visualmente o movimento). Obviamente, tudo isto garantindo a segurança da execução acima de tudo!
4. Calma – não entremos na febre dos ‘funcionais’ que, geralmente, resvalam em atividades sem sentido! Esta não deverá torna-se numa nova moda!
Um dos termos mais prejudiciais ao exercício físico é, na minha opinião, “treino funcional”. Na realidade, ou a expressão é redundante (existirá alguém que, no seu perfeito juízo, prescreva treino com o declarado objetivo de ser disfuncional?), ou é enganadora (pois muito do dito treino funcional não é, na realidade, funcional). Vamos por partes. O treino sempre visou melhorar a funcionalidade das pessoas, seja em vertentes mais vocacionadas para a saúde, seja em vertentes orientadas para o rendimento. Assim, acrescentar à palavra “treino” o termo “funcional” não acrescenta nada, numa primeira análise. Porém, numa segunda análise, o termo “funcional” é ativamente prejudicial. Primeiro, porque se associou com um conjunto de práticas que, na maioria das vezes, são mero aparato sem substância. Segundo, porque torna implícito que outros tipos de práticas não serão funcionais, o que constitui erro grosseiro. O treino será funcional sempre que sirva para melhorar a função que se propôs melhorar e, por isso, tal dependerá dos objetivos e da pessoa em causa, bem como do contexto.
Portanto, as propostas que aqui apresento não deverão ser entendidas como a nova moda, nem sequer como algo que poderá ser aplicado a todas as pessoas. São, pelo contrário, meros complementos que poderão (ou não) ser utilizados ocasionalmente, mas sempre para servir algum objetivo bem delineado. Ou seja, qualquer aplicação destas propostas deve seguir critérios e não servir como desculpa para variar por variar. Como diz o João Moscão, os músicos sentem a necessidade de conjugar harmonia e melodia num jogo de tensões e resoluções, algo que também poderá ser necessário em certas atividades desportivas. Na prática de exercício voltada para a saúde, estes aspetos poderão não ser nucleares, antes ferramentas adicionais que não pretendem substituir as ferramentas mais tradicionais, já com provas dadas.
5. Em jeito de inconclusão
As propostas aqui apresentadas são meramente ilustrativas e, claro, os seus reais efeitos deverão ser sujeitos a avaliação experimental. No entanto, é curioso que exista toda uma riqueza de processos de treino e de diferentes estímulos que são rotineiramente utilizados na música e, infelizmente, parecem ser pouco utilizados no treino com resistências. E esta transição da música para o exercício não seria inovadora: com efeito, muitas das estratégias acima descritas são usualmente utilizadas no dito treino desportivo, associado com modalidades desportivas. Não poderemos, nos ginásios e estúdios, adaptar algumas destas lógicas? Talvez, mas sempre com critério e usufruindo da oportunidade adequada. Jamais usar da diversidade só pela diversidade, sobretudo porque podem existir riscos envolvidos.
© José Afonso, 2020
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