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A Dialética da Integração

Atualizado: 14 de mai. de 2022

Resolvi escrever sobre este tema, na sequência de um artigo de opinião baseada em evidência que habitualmente entrego aos formandos dos meus cursos. É um artigo sobre o Treino Funcional, mais concretamente um escrutínio aos princípios tradicionalmente ensinados, que termina com uma tomada de posição sobre quais devem ser os critérios a ter em conta na atribuição da qualificação de "funcional" a qualquer exercício. Entretanto, não queria deixar de partilhar a minha opinião ao público em geral sobre este assunto.


Por volta do ano 2000, o método designado Treino Funcional (TF) é vasta e internacionalmente propagandeado por Juan Carlos Santana. Na altura, a divulgação contou com um manual intitulado «Funcional Training» que, entretanto, já conta com uma reedição em 2016 (Human Kinetics). Desde então, e cada vez mais, o TF atinge níveis de popularidade que o remetem, eventualmente, para a modalidade mais popular no sector do fitness. Ora bem, a definição de TF que tem sido aceite no sector das ciências do exercício é de que TF é todo o tipo de exercício que treina o indivíduo a lidar de forma efetiva com todas as leis e elementos físicos do seu ambiente (1,2). Entretanto, aqui encontramos já a primeira incoerência: se "funcional" diz respeito à relação entre o corpo e leis da física, então diz respeito ao campo de estudo biomecânica, área que deveria estar largamente explorada nas formações e manuais destes métodos... mas, não está, até hoje, em nenhum. Mas as definições de TF simplificam-se habitualmente numa curta premissa: executar uma dada tarefa para a qual o corpo está destinado (1,2). E aqui encontramos a segunda incoerência: perceber o destino de algo, requer que lhe conheçamos a sua estrutura e função, logo, no caso do corpo humano, a anatomia e fisiologia deveriam estar largamente exploradas em tais formações e manuais... mas, também não estão.


A definição tradicional de TF, bem como a pouca exploração das ciências da biomecânica, anatomia e fisiologia, além de exageradamente simplificada, fabrica manuais e métodos com centenas de páginas ou horas de formação presencial, sem uma única referência científica, nem critérios de escolha com respeito aos princípios do sistema neuro-músculo-articular, meramente redigidos mediante opinião própria não-baseada na evidência. No caso do manual acima citado, são cerca de 80 páginas dedicadas aos fundamentos (sem bibliografia referida), e cerca de outras 200 dedicadas à demonstração de exercício pré-feitos. Aqui impõe-se uma importante questão: pode o TF ser assim tão generalista e não atender às particularidades? Claro que não! Então, qualquer manual ou método de TF não deverá conter exercícios alguns pré-concebidos, mas sim os critérios que possibilitem o Treinador avaliar, construir e monitorizar o exercício em cumprimento do princípio da individualidade. Mas, de entre tantos princípios tradicionais do TF, e todos analisados no meu artigo de opinião, irei aqui tratar somente do mais popular de todos: INTEGRAÇÃO.


Os exercícios integrados - entenda-se movimento poli-articular - são vistos como as principais unidades estruturais do TF, ao passo que os "isolados" - entenda-se movimento mono-articular - são vistos como não-funcionais. Santana refere mesmo que os "isolados" não transferem para o desempenho desportivo e "não são funcionais" (1,2). Creio que poderemos concordar com esta premissa: os exercícios "isolados" não são funcionais. Porém, não há preocupação alguma na construção de exercícios "isolados", pois que não existem! O fenómeno de co-contração antagonista, bem como a presença de músculos bi-articulares em todas as articulações, impossibilitam o verdadeiro isolamento, tornando todos os movimentos humanos numa integração de forças inter-articulares e inter-musculares (3,4).


Repito: Isolado não existe, e algumas experiências demonstram claramente isso. E agora sim, vou falar de ciência, e não de métodos: o músculo Soleus ainda produz força no tornozelo após seccionado o seu tendão, e o flexor cubital do carpo ainda sofre 90% de deformação quando o seu tendão é seccionado (5) - estes fenómenos devem-se a ligações fasciais... (Ah! claro! como poderia eu esquecer da fáscia?!) Então, os "entusiastas funcionais" que afirmam que a tentativa de "isolamento" não é funcional, depois são os mesmos que afirmam que a fáscia é o orgão mais importante na locomoção porque liga todas as estruturas... Ora bem, encontramos a terceira incoerência: se a fáscia tudo-liga, então, em qualquer que seja o movimento, tudo é trabalhado e tudo é integrado - mesmo durante a execução do mais típico exercício "isolado", o Leg Extension (LE).


Não é por acaso que exemplifiquei o LE, pois que, na minha humilde opinião, a sua exclusão da lista de exercícios funcionais - e de muitas salas de musculação e de fisioterapia - foi um dos maiores erros do fitness e da reabilitação. Tomando o músculo Vastus Lateralis como exemplo, músculo mono-articular (somente cruza uma articulação) que executa concêntricamente a extensão do joelho, seguiremos com uma sequência de perguntas, em estilo de aprendizagem dialética (à velha moda socrática, popularizada por Platão) - um hipotético diálogo entre Sócrates, da antiga Grécia, e um Técnico de Exercício Físico (TEF):


Sócrates: Então, amigo Treinador, que movimento executa o Vastus Lateralis?

TEF: Ora, caro filósofo, executa a extensão do joelho!

Sócrates: Muito bem, meu prezado amigo, então, diz-me, o joelho humano possui tal possibilidade de movimento?

TEF: Com certeza, Sócrates! Todos os joelhos humanos executam extensão, em condições normais!!!

Sócrates: E essa máquina guiada, que vós designais de "isolada", a que chamaram Leg Extension, que movimento nos estimula a executar?

TEF: Bem, sem dúvida que é a extensão do joelho. Na verdade, só se consegue vencer a resistência da máquina usando a força dos nossos extensores, prezado Sócrates.

Sócrates: Isso quer dizer que a Leg Extension melhora a força dos extensores do teu joelho, amigo Treinador?

TEF: Inevitavelmente, terei de concordar, sim!

Sócrates: Entretanto, jovem Treinador, perdes os ganhos de força no Vastus Lateralis quando saíres da máquina?

TEF: Claro que não, Sócrates! Bem sabeis que as adaptações são geradas no corpo, e não na máquina! É o praticante que se adapta e as adaptações seguirão com ele...

Sócrates: Isso significa que já haverá, inevitavelmente, transferência dessa força para outras atividades.

TEF: Pois... assim me parece, Sócrates!

Sócrates: Então, só me resta uma última pergunta: o que há de disfuncional na melhoria do único movimento articular para o qual o Vastus Lateralis foi pelos Deuses concebido?

TEF: (silêncio...)


Perdoe-me o leitor, por esta minha exposição filosófica, mas, de facto, é de filosofia que o fitness carece - além de ciência, que, por acaso, também deriva da filosofia - pois que a simplicidade com que estas formações, métodos e manuais do dito Treino "Funcional", quase que remete o conhecimento necessário ao Treinador para o equivalente a uma linha de montagem ou de uma caixa de supermercado (sem sentido pejorativo para estes últimos, mas sim para o primeiro). Mas agora vamos à ciência: contrariamente ao que tem sido dito, o LE não induz mais stress no ligamento cruzado anterior (6,7) nem mais compressão femoro-patelar do que os exercícios ditos integrados (7), sendo até fundamental na reabilitação do joelho (8), além de ter correlação positiva com o desempenho desportivo (9,10).


Assim... curto e direto ao assunto: o fitness e a fisioterapia, de um modo geral, têm estado equivocados. E, em jeito de conclusão termino, afirmando que o LE não é, nem isolado, nem disfuncional - é integrado e é funcional, dependendo do corpo do praticante e do objectivo - mas sobre estes critérios, deixarei para falar noutra altura.


© João C. Moscão, 2019

Direitos de autor reservados, partilhe com respeito.


Referências:


(1) Santana, J. (2000). Functional Training. Breaking the bonds of traditionalism, companion guide. IHP Institute of Human Performance.

(2) Santana, J. (2016). Functional Training. Exercisess and programming for training and performance. Human Kinetics.

(3) Knudson, D. (2007). Fundamentals of Biomechanics. 2nd Edition. Springer.

(4) Latash, M. (2008). Neurophysiological Basis of Movement – 2nd Edition. Human Kinetics.

(5) Findley, T. (2009). Fascia Research II: Second International Fascia Research Congress. International Journal of Therapeutic Massage and Bodywork. Vol 2. Num 3. Sep 2009.

(6) Luque-Seron, A., Medina-Porqueres, I. (2016). Anterior Cruciate Ligament Strain in Vivo: A Systematic Review. Sports Health. Vol 8, Num 5. Sep Oct 2016.

(7) Jewiss, D., Ostman, C., Smart, N. (2017). Open versus Closed Kinetic Chain Exercises following an Anterior Criciate Ligament Reconstruction: A Systematic Review and Meta-Analysis. Journal of Sports Medicine. Vol 2017.

(8) Fleming, B.C., Oksendahl, H., and Beynnon, B.D. (2005). Open-or closed-kinetic chain exercises after anterior cruciate ligament reconstruction? Exerc. Sport Sci. Rev. 33(3).

(9) Newman, M.A., Tarpenning, K.M., and Marino, F.E. (2004). Relationships between isokinetic knee strength, single-sprint performance, and repeated-sprint ability in football players. J. Strength Cond. Res. 18(4).

(10) Bimson, L., Langdown, L., Fisher, J., Steele, J. (2017). Six weeks of knee extensor isometric training improves soccer related skills in female soccer players. Journal of Trainology 2017;6.

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