Muitos já têm lido e ouvido a minha opinião crítica acerca do uso do foam roller como percursor de "libertação" miofascial (LMF). No entanto, tenho continuado a pesquisar (ciência - não nos livros nem dvds de métodos) e mais investigação tem sido feita. Assim, partilho um pouco mais:
Primeiro, é deveras importante percebermos que os efeitos da LMF (com ou sem rolo) estão pouco estudados e que os gurus da fáscia, quando dizem que "este tecido e técnica estão estudados", suportam-se essencialmente em artigos de opinião e/ou livros de outros gurus com nome internacional. A verdade é que a ciência ainda sabe muito pouco acerca deste tecido - apesar da sua complexidade e importância serem inequívocas, ainda há pouca informação sobre a sua estrutura e função (Bordoni, 2014). Aliás, os autores referem que "antes de nos familiarizarmos com um método, devemos conhecer a estrutura e função do tecido que carece tratamento" (Bordoni, 2015). Ora, as técnicas já datam de algumas décadas, mas a informação sobre a anatomia e fisiologia da fáscia ainda é escassa. Estamos às escuras...
Sabe-se que a fáscia tudo liga e que é um importante mecano-trasmissor de forças musculares (Findley, 2009; Tozzi, 2012). Sabe-se que este mesmo papel é em grande parte propiciado pela abundante concentração de colagénio - o que confere à fáscia uma resistência à deformação tão elevada que, para deformar 1%, a fáscia lata e a fáscia plantar requerem cerca de 4515 N (460 Kg) de força (Chaudhry, 2008). Estas características parecem ser muito desfavoráveis à ideia de que a fáscia poderá ser "libertada", sem recurso a uma moto-serra...
Quanto às suas características neurais, é de referir que não possui eferência (não recebe estímulo) possuindo imensa aferência (propriocepção) - é, de facto, um importante órgão proprioceptor (Shleip, 2003). Ainda assim, não possui macanoreceptores do tipo fuso neuro-muscular, que são preponderantes no que toca à percepção de movimento e posição (Proske, 2012), bem como os únicos com propriedades de contração reflexa (Kandell, 2013). A fáscia não os tem, logo não é capaz de modular a sua própria tensão, nem é mais importante que o tecido muscular na construção cortical de movimento e posição.
Quanto à presença de miofibroblastos neste tecido (facto usado em defesa do argumento da sua capacidade de gerar tensão própria), sabe-se que são células musculares lisas, contraem (sim...), mas não respondem a estímulo eléctrico (Baum, 2011) e a sua capacidade de modular a tensão fascial é mera especulação, pois a sua força contrátil é muito baixa (Freiwald, 2016) - na verdade são células cuja contração não desempenha função motora, mas sim de cicatrização (Baum, 2011). Escrever o termo "miofibroblastos" em slides de formações de venda de rolos é deveras redutor - mas, espanta-me (mais ainda) a pouca capacidade de questionamento dos alunos, ao não pedirem ao professor/guru que explique como estes "nano-músculos" são capazes de elevar a tensão facial, SEM que esta seja atribuída ESSENCIALMENTE ao tecido muscular estriado - já os clientes, desses tenho alguma "pena", pois que passar um rolo, e literalmente esborrachar estes importantes sinalizadores de cicatrização, poderá não ser o melhor para a sua saúde...
Sendo que é pouco provável que a LMF realmente altere as propriedades faciais, entre as possíveis causas da diminuição da resistência dos tecidos (sentida pelo terapeuta ou treinador após a intervenção manual), está a redução global da tonicidade muscular (por afinação hipotalâmica) como resposta à deformação dos proprioceptores faciais - nomeadamente receptores interesticiais e Ruffini (Shleip, 2003; Tozzi, 2011). Contudo, novamente, não passa de especulação.
O que sabe REALMENTE a ciência?
Numa revisão sistemática aos efeitos da LMF em 19 estudos, Ajimsha (2015) concluíram que a literatura científica é ainda ambígua, quer na qualidade metodológica, quer mesmo nos resultados decorrentes da intervenção - em metade dos estudos analisados a LMF só foi melhor que a não-intervenção, demonstrando-se com efeitos similares a outros modos de tratamento. Os autores advertem: "a evidência empírica é um bom ponto de partida, mas está na altura das evidências científicas suportarem o seu uso clínico". Isto (tal como referi acima) relativamente à LMF manual - de qualquer modo, espelha bem a ignorância ainda patente. Aliás, numa recente revisão aos efeitos da terapia com LMF na melhoria da dor crónica e funcionalidade, Laimi (2017), além de verificarem que os estudos que demonstram haver melhorias incorrem em grande risco de enviesamento metodológico, concluíram que “as evidências atuais acerca da terapia de libertação miofascial não são suficientes para a garantir como tratamento dor músculo-esquelética crónica.”
Destacando os efeitos do foam-roller em particular, numa recente revisão, Freiwald (2016) concluíram que a ciência desconhece os potenciais efeitos nefastos causados por este instrumento no tecido neural, arterial e ósseo (mas que os pode ter, pode!). Juntando a negligência dos efeitos negativos às poucas evidência científicas dos benefícios do uso do rolo, o seu uso é desaconselhado (Freiwald, 2016). Haja prudência...
Numa revisão sistemática, Cheatham (2015) analisaram os estudos relevantes até à data e concluíram que a LMF com rolo gera melhorias agudas na mobilidade (entenda-se amplitude de movimento) sem prejudicar o desempenho muscular agudo (força e salto, por exemplo). Contudo, nesta revisão pelo menos, a LMF também não provocou melhorias no desempenho, i.e. foi irrelevante na principal qualidade física que temos – força. Seja como for, assumamos que a LMF com rolo aumenta a amplitude de movimento, demonstrado recentemente em Monteiro (2016) - à custa de quê? não se sabe... parece-me pouco prudente aplicar uma técnica sem se conhecer as causas dos seus efeitos, mesmo que os seus efeitos sejam benéficos (aparentemente...). Porque escrevi "aparentemente"? Porque só podemos considerar BENÉFICO, este aumento da amplitude, se a força não diminuir, algo que já foi demonstrado noutro estudo: a LMF com rolo provoca perda aguda de força (Monteiro, 2017). A verificar-se mais vezes futuramente, isto coloca o uso do rolo (talvez da LMF em geral) fora das opções de preparação para o treino – apesar de vastamente usado para esse efeito. Que grande equívoco...
Ou seja: a LMF, quando é benéfica, só é melhor que nada fazer! Ainda assim, dado o pouco conhecimento que se tem dos efeitos deste nível de compressão nos tecidos, concluo que seja melhor não fazer.
Advertência
O presente artigo está protegido ao abrigo do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC). A utilização não autorizada – além da partilha direta deste link e do uso como breve citação em artigos e críticas – pode configurar a prática de um crime de usurpação ou contrafação (arts. 195º e 196º do CDADC) para além de incorrer em irresponsabilidade civil conducente a um pedido de indemnização.
Citações:
· Bordoni B, Zanier E. (2014). Clinical and symptomatological reflections: the fascial system. J Multidiscip Healthc. 2014;7:401–411
· Bordoni B, Zanier E. (2015). Understanding fibroblasts in order to comprehend the osteopathic treatment of the fascia. Evid Based Complement Alternat Med. 2015;2015:860934.
· Findley T. Fascia research II. Second international fascia research congress. Int J Ther Massage Bodywork. 2009;2(3):4–9.
· Tozzi, P. (2012). Selected fascial aspects of osteopathic practice. J Bodyw Mov Ther. 2012 Oct;16(4):503-19.
· Chaudhry, e col. (2008). Journal of the American Ostheopathic Association. vol. 108 No. 8 .
· Shleip, R. (2003). Fascial plasticity – a new neurobiological explanation: part 1 & 2. Journal of Bodywork and Movement Therapies. Jan 2003.
· Proske, U., Gandevia, S. (2012). The proprioceptive senses: their roles in signaling body shape, body position and movement, and muscle force. Physiol Rev 92. American Physiology Society.
· Kandel, E., Schwartz, J., Jessel, T., Siegelbaum, S., Hudspeth, A. (2013). Principles of Neural Science. 5th Edition. McGraw Hill. 2013.
· Baum, J., Duffy, H., (2011). Fibroblasts and Myofibroblasts: what are we talking about? J Cardiovasc Pharmacol. 2011 April ; 57(4): 376–379
· Freiwald, J. e col., (2016). Foam-rolling in sport and therapy – potential benefits and risks. Part 1 & 2. Sports Orthop. Traumatol. 32, 258–266 (2016).
· Ajimsha, M.S., e col., (2015). Effectiveness of myofascial release: systematic review of randomized controlled trials, Journal of Bodywork & Movement Therapies (2014).
· Laimi, K., e col., (2017). Effectiveness of myofascial release in treatment of chronic musculoskeletal pain: a systematic review. Clinical Rehabilitation. 1-11, 2017.
· Cheatham S., e col. (2015). The effects of self-myofascial release using a foam roll or roller massage on joint range of motion, muscle recovery, and performance: a systematic review. International Journal of Sports Physical Therapy10, 827-838.
· Monteiro, E., e col. (2016). Is self- massage an effective joint range-of-motion strategy? A pilot study, Journal of Bodywork & Movement Therapies (2016).
Monteiro, E., e col. (2017). Maximum repetition performance after different antagonist foam rolling volumes in the inter-set rest period. The International Journal of Sports Physical Therapy. Vol 12 Num1, Feb 2017.
留言